
Uma das coisas que mais marcaram a Semana de Arte Moderna de 1922 foi o estilo vanguardista dos artistas que participaram, seja em suas obras escritas, telas, esculturas ou música. Um dos maiores deles foi Mário de Andrade (Emicida que o diga).
O que muitos não sabem é que Mário de Andrade foi essencial para a música brasileira. Liderou o fundamental trabalho de documentar a música folclórica rural e, durante os anos 1930, fez uma enorme coleção de gravações das músicas e de outras formas de música do interior.
Posteriormente ao lado do escritor e arqueólogo Paulo Duarte conseguiram criar o Departamento de Cultura de São Paulo unificado (Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de São Paulo), onde Mário de Andrade foi nomeado diretor-fundador.
Disso tiramos dois apoios para o desenvolvimento deste texto:
1º – “Mário de Andrade é o centro de São Paulo”, afirmação fundamental do poeta Sérgio Vaz.
2º – Mário de Andrade tinha, em seu cerne, a necessidade de fazer o modernismo romper com o passado.
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2021
1º – Os fragmentos de gravações da ex-discoteca pública de São Paulo fundada em 1935, hoje reside no CCSP (Centro Cultural São Paulo) e ganha nome da fundadora e diretora que dedicou grande parte de sua vida ao projeto: Oneyda Alvarenga.
2º – Numa Gama: Artista multimídia natural de Niterói, Rio de Janeiro. Extrai sensações de ambientes concretos e imaginários para criar poemas sonoros análogos aos sonhos. Quebra-cabeças entre a organicidade terrena e o abstrato etéreo trazem a não binariedade a uma perspectiva única, confunde algum senso de dualidade. Um trabalho, na minha visão, extremamente vanguardista, assim como Mário de Andrade.
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O modernismo sempre foi muito baseado no estudo: de formas, sons, palavras… o trabalho de Numa Gama também sempre foi muito baseado no estudo: das sonoridades, instrumentos, experimentalismo.
“Memórias de Oneyda” é exatamente isso. É estudo, pesquisa, a arte de vasculhar todas as possibilidades e experimentar tudo o que é possível no momento. É a arte de servir ao inesperado, se aventurar sem medo de dar errado.
A convite do CCSP (Centro Cultural São Paulo), Numa Gama foi esmiuçar o grande acervo, ou melhor, o grande tesouro que lá se encontra, nos pormenores da Discoteca Oneyda Alvarenga. Uma gigantesca missão, mas ao mesmo tempo uma grade honra.
Este trabalho de pesquisa se transformou no EP “Memórias de Oneyda”. Isso mesmo, Numa Gama metamorfoseou esses arquivos e trouxe-os de volta em forma de canções. O fantástico de tudo isso foi a capacidade de entender todas as sonoridades que ali estavam e costurá-las umas às outras formando músicas incríveis.
Assista à RESIDÊNCIA | RMX – Numa Gama discotecando o EP
Sim, por um momento achei que Numa Gama havia composto todas as sonoridades e colocado-as em cima dos áudios extraídos do acervo, como você talvez esteja achando também, mas o trabalho foi muito mais transgressor, pois praticamente todos os áudios (vozes e sons) vieram do acervo.
“As percussões, camadas harmônicas e quase todos os detalhes foram extraídos de áudios do acervo, com exceção apenas de algumas gravações de campo e trechos de instrumentos que gravei, também trabalhados como colagem sonora. Adaptei a sonoridade das faixas para manter a qualidade e textura das gravações mais antigas, buscando um meio termo entre um som contemporâneo e uma gravação em disco ou fita de 1938”, conta Numa Gama.
“Memórias de Oneyda” talvez seja um dos trabalhos mais ricos culturalmente e historicamente já feitos no Brasil, é de um valor ímpar e traz uma carga artística e educativa fora do normal. Com certeza será um trabalho objeto de estudo num futuro não tão distante.
O Disco

A capa é um remix visual do organograma do Projeto Rádio-Escola, idealizado por Mário de Andrade, que seria uma instituição difusora de uma música essencialmente brasileira. A discoteca foi criada, mas a proposta da Rádio-Escola nunca se concretizou em sua plenitude. A capa é uma parceria entre Numa Gama e Clau Smith.

O EP “Memórias de Oneyda” traz ao todo 13 faixas e cada uma delas, segundo Numa Gama “foram criadas como se fossem uma fotografia do subconsciente de Oneyda, quem após tantas décadas de escuta seria um códice da música brasileira até o fim do século 20. Numa narrativa de memórias dissolvidas, não há uma linearidade entre época e localidade das gravações usadas – A missão de pesquisas folclóricas de 1938 se mistura com partes do acervo de todas as épocas, incluindo adições mais recentes.”
O trabalho traz criação e mixagem por Numa Gama e masterização de Bruno Palazzo, sendo todo desenvolvido sob convite do CCSP (Centro Cultural São Paulo). Hoje, a Discoteca Oneyda Alvarenga está aberta a visitas, onde se pode acessar o vasto acervo de música popular, folclórica e erudita, de procedência nacional e estrangeira, disponível para consulta e audição.
A faixa 10 do EP contém uma gravação do povo Yawalapiti que no ano 2020 perdeu um grande líder para covid-19. 50% do lucro obtido por streaming e Bandcamp será doado para o Movimento de Mulheres do Xingu, ATIX Mulher.
Em “Memórias de Oneyda” Numa Gama atua como contraventore que criou um espetáculo sonoro em meio às relíquias de um Brasil rico culturalmente, mas vastamente desconhecido para praticamente todos nós.
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Encontre ae Artista:
Ouça o EP que está disponível somente no Bandcamp:
https://numagama.bandcamp.com/album/memorias-de-oneyda
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