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ROCINHA: valorização da ancestralidade preta no disco experimental de Mbé.

Ressignificar a vivência preta a partir da arte, e não da marginalização. Ressignificar a música a partir de experimentações de amefricanidade, e não do eurocentrismo. “ROCINHA” mostra que o Brasil foi uma colônia, mas de nações africanas.
Foto divulgação por Vitor Granete

ROCINHA” é o nome do primeiro disco do artista carioca Mbé.

Rocinha.

A maior favela do Rio de Janeiro. A maior do Brasil.

E com grande densidade populacional, tudo é amplificado, inclusive a quantidade de talentos. Lá, onde o poder público não atua é justamente onde atua o poder do público, das pessoas, que emanam seus anseios, suas dores e perspectivas de mudança para o futuro.

Justamente de lá veio Mbé, de nome Luan Correia, artista, pesquisador, produtor cultural e musical e engenheiro de som.

ROCINHA”, seu trabalho de estreia, é como um álbum de fotografias sonoras, mas todas recortadas e remontadas de outra maneira, nem sempre de forma tradicional. Por isso, este disco de sonoridade rica, versátil e até espantosa, remete muito aos movimentos vanguardistas e dadaísta, pois a construção é milimetricamente calculada para não parecer que foi calcula e, assim, romper com as convenções musicais.

A decodificação da música em busca da ancestralidade, tudo através de estudos e experimentações, este foi o ponto de partida de Mbé.

Os cantos, as batidas e as percussões são elementos que mantiveram a cultura preta viva ao longo dos séculos, mesmo com a forte tentativa dos brancos de apagar e oprimir essa raiz secular.

Mas neste trabalho de Mbé foi exposto para nós outros elementos acerca desta vivência cultural. Aqui, foram apresentados colagens sonoras que, juntas, rompem o tradicionalismo. Cada parte da obra traz gravações de campo que registram as práticas de povos distantes dos centros urbanos.

Com os ruídos, é possível ouvir mais do que os músicos e seus instrumentos, em “ROCINHA”, eles são parte importante da obra. Além deles, os sons de animais, crianças, rios e da mata compõem a estética.

“Os samples funcionam como amostras de onde viemos e do que somos, as batidas deixam pegadas nas trilhas e os ruídos ressoam aquilo que não nos contam. Recentemente uma palavra chegou até mim e acredito que ela resuma muito bem onde eu imagino chegar: ‘sankofa’, que por coincidência, é o mesmo nome que carrega o Museu da Rocinha. Sankofa é uma palavra da língua Akan, originária das nações africanas de Gana e da Costa do Marfim, que significa: ‘Devemos olhar para trás e recuperar nosso passado, assim podemos nos mover para frente. Assim compreendemos por que e como viemos a ser quem somos nós hoje’”, reflete Luan.

Foto divulgação por Cecília Cabral

Mbé vem do yorubá e significa “ser e existir”.

Não apenas no nome artístico escolhido, Luan Correia trouxe isso para o tema central do disco “ROCINHA”. A obra, como um todo, é a oportunidade e uma necessidade de ressignificar a vivência preta a partir da arte, e não da marginalização.

Desde os antepassados já sabemos a riqueza da cultura preta, que sempre foi a base para o desenvolvido da cultura geral em nosso país, mas sempre marginalizada quando é feita por pretos e idolatrada quando brancos fazem exatamente a mesma coisa, mais claramente, quando roubam a arte e tiram dela todo o significado.

O Disco

Capa do disco por Lucas Pires

Mbé tem uma trajetória musical amplamente rica. Iniciou sua experiência artística ainda na escola de cinema 5 Visões, onde se formou. Como engenheiro de som, na Audio Rebel, teve contato com artistas como Jards Macalé, Jorge Mautner, Wilson das Neves, Ava Rocha, Iasmin Turbininha, Peter Brötzmann e muitos outros. Como técnico de som fez trabalhos com nomes do rap nacional e da cena independente do Rio de Janeiro. Como músico fez produções com o coletivo de rap da Baixada Fluminense, Justa Causa, onde atua produzindo beats e na parte técnica de mixagem.

ROCINHA” foi produzido por Mbé e Bernardo Oliveira. Mixado pelo próprio Luan Correia e masterizado por Igor Ferreira. Ainda tem incríveis participações de Juçara Marçal, José Mekler, Lucas Pires, Orlando Costa e Luizinho do Jêje. É um lançamento pela QTV Selo.

Ressignificar a vivência preta a partir da arte, e não da marginalização. Ressignificar a música a partir de experimentações de amefricanidade, e não do eurocentrismo. “ROCINHA” mostra que o Brasil foi uma colônia, mas de nações africanas.

“Existe o fato concreto dos nossos irmãos de África não os considerarem como verdadeiros africanos (africanos escravizados e trazidos para a América). O esquecimento ativo de uma história pontuada pelo sofrimento, pela humilhação, pela exploração, pelo etnocídio, aponta para uma perda de identidade própria, logo reafirmada (o que é compreensível, em face das pressões raciais no próprio país). Só que não se pode deixar de levar em conta a heroica resistência e a criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquanto descendentes de africanos, a herança africana sempre foi a grande fonte revificadora de nossas forças. Por tudo isso, enquanto amefricanos, temos nossas contribuições específicas para o mundo pan-africano. Assumindo nossa Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária ou mitificada da África e, ao mesmo tempo, voltar o nosso olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente”.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 92, n. 93, p. 78, (jan./jun.), 1988b.

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