
“Bruxa Cangaceira” é o nome do disco de estreia da multiartista sergipana Isis Broken.
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“Das terras distantes do alto sertão sergipano, uma bruxa cangaceira nasce emergindo em meio ao caos e fogo que caiu do céu, após o apocalipse que cortaram as cabeças dos nossos cangaceiros…”
Assim inicia esse disco, e que disco. “Bruxa Cangaceira”, faixa introdutória que abre o trabalho, é uma ode viva, forte e visceral sobre as travestis nordestinas invisibilizadas pela sociedade que encontram-se as margens, mas que não irão mais morrer igual a bichos.
Eu sabia que este disso seria tenso, pesado e essencial, mas a gente sempre é surpreendido e essas surpresas boas são incríveis demais. Isis Broken é um expoente da música sergipana, com talento artístico excepcional, a MC é capaz de fazer rimas arraigadas e intrínsecas ao mesmo tempo, tudo com um flow único e toda uma carga de regionalismo que ela sempre faz questão de reafirmar. É sim nordestina, é sim sergipana, é sim cangaceira!
A primeira vez que ouvi falar sobre seu trabalho foi através de uma entrevista que fiz com o músico Alex Sant’Anna, outro sergipano, ele citou Isis Broken entre artistas do seu estado que todo mundo deveria conhecer, a partir daí eu tive a oportunidade de conhecer o trabalho dela e agora você terá também.
É sempre bom pontuar que, além de letrista e cantora, Isis Broken também é uma incrível artista visual, eu poderia ficar aqui falando pontos e pontos sobre isso, porém vou me apegar a duas coisas: ao videoclipe “Ararinha da Viola”, um dos melhores clipes que já vi na minha vida (assista abaixo) e a lista de premiações que seus trabalhos visuais já receberam, se liga na lista, sim, vou destacar TUDO!
Premiações de Isis Broken:
- M-V-F, Melhor Figurino
- 27º Festival de Cinema de Vitória, Melhor Videoclipe Nacional
- 28º Festival de Cinema de Vitória, Melhor Videoclipe Nacional
- Austral, Melhor Videoclipe
- Cinefest Gato Preto, Melhor Videoclipe Nacional
- Festival Internacional de Itabaiana, Melhor Videoclipe Nacional
- Festival Internacional de Itabaiana, Melhor Videoclipe Sergipano
- Prêmio Calango, Melhor Videoclipe
- First-Time Sessions, Melhor Videoclipe
- Lift-off Global, Melhor Videoclipe
- Ca’ Foscari Film Festival, Melhor Videoclipe
- Bogotá M-V-F, Melhor Videoclipe no Panorama Latino
Viu só o peso dessa artista véi, esse país PRECISA conhecer Isis Broken!
Veja o clipe “Ararinha da Viola”
Agora voltamos ao disco “Bruxa Cangaceira”. Como disse antes, ele me surpreendeu, e não pela qualidade pois isso eu já sabia que seria foda, mas o que me pegou mesmo foram as sonoridades. Achei que seria uma obra mais focada no rap, mas Isis Broken foi extremamente além disso, mas sim, ainda tem muita rima, mas as bases são de diversos estilos. Temos trap, drill, pop, dub, rock, vogue, toques de afoxé, R&B, forró e ragga, tudo isso fazendo uma ótima conexão entre as músicas, nenhuma delas fica destoada ou parece perdida do disco. Que trampo foda demais!
Mas a veia mais forte da multiartista é o repente, afinal isso faz parte do seu ser. Isis Broken é bisneta de coiteiro de Lampião (pessoas que ajudaram os cangaceiros, dando-lhes abrigo e comida) e neta de repentista e cordelista. O sertão é seu sangue, sua terra, sua raiz, e com orgulho ela sempre traz isso para suas músicas, assim como também destaca sua vivência como travesti preta e cangaceira.
Aproveito para tocar em outro ponto extremamente importante. Talvez eu nem deveria falar disso aqui onde sempre dou enfoque na obra, porém não podemos nos calar e sei que espaços para esses assuntos são extremamente escassos e todo mundo precisa ter sua voz ouvida. Isso não é sobre a artista Isis Broken, é sobre a pessoa Isis Broken e seu esposo Lourenzo. O casal está esperando um bebê, e os momentos que deveriam ser somente de alegria foram privados de ambos com sucessivos casos de transfobia advindos de todos os lados.
Abaixo deixo o relato na íntegra (escrito pela própria Isis Broken) do descaso do governo público com a situação do casal:
“Hoje resolvi relatar todo o nosso processo traumático que estamos passando com o SUS de Aracajú, somos o primeiro casal transcentrado do Sergipe a esperar um filhe, mas o que deveria ser um processo lindo e amoroso, se tornou um grande pandemônio transfobico. Sofremos transfobia em todos os espaços públicos e privados (a mando do SUS), nossas identidades não estão sendo respeitadas por atendentes, enfermeiros, médicos e afins… Lourenzo passou duas semanas com um sangramento que não passava e a médica avaliou ele de forma desleixada e disse “vá pra casa e espere o SUS liberar uma ultrassom pra ver se o bebê tá vivo ou morto”. Além do constrangimento que passamos no laboratório da Unit Sergipe sem respeitar o nome social de Lourenzo, além de outros diversos traumas que estamos passando. Tudo isso sem ajuda ou apoio de nenhuma ONG sergipana, essas mesmas que sabem meu nome e meu número na hora de pedir show de graça “pela causa”, a VEREADORA TRANS de Aracaju pela qual apoiei na campanha e cometeu atos racistas contra mim e outra travesti também ficou em silêncio e nos silenciou nos bloqueando das redes após a denúncia que fiz dos seus ataques! Mas agora estamos falando de uma vida que está sendo gerada sem o mínimo de condições! Lourenzo está indo pro 4 mês de gestação e ainda não tivemos uma consulta de pré-natal com um médico! Isso é inadmissível!”
Infelizmente coisas do tipo se repetem com frequência e recentemente o casal passou por mais uma situação absurda, segue o relato na íntegra (escrito pelo Lourenzo):
“ACABEI DE SOFRER AGRESSÃO POR PARTE DE UM MOTORISTA DA Uber.
Eu, homem trans, com 35 semanas de gestação tinha acabado de sair de uma consulta de pré-natal com a minha esposa Isis Broken em uma corrida da Uber indo para casa, até que o motorista começar a se intrometer no meio da nossa conversa falando que eu era uma mulher grávida, e eu o corrigi falando que eu era um homem trans que estava gestando e ele insistia falando que “desculpa, mas isso não existe e que era coisa da minha cabeça”. Eu continuei tentando explicar e o motorista foi ficando exaltado até que ele começou a me ofender e eu falei que pra ele ter um pensamento assim e falar o que ele estava falando pra mim, que eu era burro e que isso não existia, falei que ele era um bosta e foi onde ele começou a ameaçar a me bater, logo pedi pra Isis ligar para minha mãe e falei que meu padrasto estava em casa e era policial, foi onde ele deu meia volta (já na rua da minha casa) acelerou o carro (quase bateu) e falou que eu iria ver quem era o bosta e que ele iria mostrar que era louco, eu tentei inclusive pular do carro de nervoso, foi onde a Isis me puxou, ele parou o carro e nós saímos correndo com ele atrás da gente, por sorte já estávamos próximos de casa.
Lembrando aqui que eu estou com 35 semanas de gestação, tentei pular de um carro, poderia ter acontecido algo muito pior, fora o esforço que tive que fazer pra correr, descer uma ladeira enorme e agora estou aqui nem conseguindo andar de tanta dor por causa do trauma e do esforço que fiz, isso é um absurdo! Eai Uber, é esse tipo de motorista que vocês contratam?”
Eu sei que isso não tem relação direta com o disco, mas todo espaço para uma voz é preciso ser aproveitado, eu sei de qual lado estou, e no momento que as “instituições jornalísticas” cada vez nos dão mais vergonha com toda sua omissão e permissividade, eu não vou fazer parte disso.
O Disco

As doze faixas de “Bruxa Cangaceira” são produzidas pela dupla sergipana, Adam Viana – não-binárie, que também assina guitarra, viola e sanfona – e Mombin, preto e pansexual, além de assinar sintetizadores, flautas, pau de chuva e vocais. O baixo do álbum quem assina é Filipe Williams, ex-integrante da banda Taco de Golfe. Foi gravado no Maca Records Produções e tem mixagem e masterização por Fabrício Rossini . É um projeto apoiado pelo edital 06/2020 proposto pelo Governo de Sergipe, através da Fundação de Cultura e Arte Aperipê – FUNCAP com recursos da Lei Aldir Blanc.
Indexando em sua obra uma vasta lista de referências culturais muito calcadas em sua vivência regional, Isis Broken transpôs visceralidade em cada canto deste disco, fazendo de “Bruxa Cangaceira” uma bibliografia com fatos cantados do que é sobreviver no país que mais mata travestis.
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